De profundis


Senhor, que sabes quem sou,

Sabe lá também o resto:

Sabe lá que o meu protesto

Não é isto que tu vês...

Não é isto...

Nem a facada no teu filho Cristo...

Nem o pranto que tens visto

Correr em lava a teus pés...


Não é isto,

Nem o sonho de Babel...

Nem o bombo que fiz da minha pele...

Nem o Credo num Deus que me perdeu...

Foram gestos que passaram

Pelo meu corpo e roubaram

Um perfume que julgaram

Que era meu...


Não é isto, nem aquilo

Que um mocho a cantar de grilo

Te mandou como um sinal

Da grande dor que me dói...

Só é sinal do meu todo

Esta elegia do lodo,

Que não foi...


Não é isto,

Nem o muito que há-de vir:

O sarro que há-de sair

Da vasante da maré...

O fundo do mar é sujo,

Mas nos olhos do marujo

Não se vê...


Não é isto, nem é nada

Que chegue à tua morada

Sem, a minha assinatura,

Que sou eu...

Eu, esta ovelha ranhosa

Que remói silenciosa

a lembrança dolorosa

do pastor que lhe bateu...


Miguel Torga - O Outro livro de Job (1936)